O GATO PRETO

Atualmente o automobilismo está bastante seguro para os pilotos. Graças à proteção divina e também às maiores exigências quanto à segurança, os acidentes em corridas não têm acarretado maiores injúrias aos pilotos. Mas nem sempre a situação foi essa — a história desse esporte está recheada de acidentes fatais.

Alguns anos após Fangio aposentar-se, lhe perguntaram qual havia sido sua maior vitória. A resposta foi pronta, de quem já havia feito um bom balanço da carreira: "Foi ter saído das corridas com vida!".

Portanto, vemos que sobreviver já era uma grande vitória. Nos tempos do grande pentacampeão eles corriam sem cinto de segurança, sem barras protetoras para o caso de capotagem, sem capacete nem macacão antichama. As largas áreas de escape não existiam. Haviam sim, postes, hidrantes, meio-fio de calçadas..., e nem todas as curvas tinham guard-rails separando a pista de florestas e precipícios.. . Em suma, estava claro que correr de carro era desafiar a morte cara a cara, com muita ousadia.

Esse fato, conhecido por todos, de início já eliminava muitos candidatos a piloto. Era preciso muita ousadia, coragem, paixão, e, por que não, uma boa dose de loucura para ser um corredor. Em suma, precisava ser meio doidão.

Correr de automóvel era tabu familiar. Tinham medo. Raros eram os casos em que os pais incentivavam os filhos a correr, como hoje é tão comum. Ao contrário, os pais puniam os filhos que se metessem "nessa loucura de correr de carros". Meu pai, por exemplo, cortou a minha mesada na esperança de me fazer abandonar o kart. Não adiantou; roí beira de penico e dei um jeito de continuar correndo. Somente o surf desviou minha atenção e por uns tempos deixei as pistas pelo mar.

Esposas ameaçavam, deixar os maridos se esses "irresponsáveis" não desistissem de tentar se matar com carros velozes. Daí que muitos pilotos corriam com pseudônimo para que as famílias não soubessem de suas aventuras nas pistas. Cito um caso particular: meu sogro era o "Gato Preto". Minha esposa e os irmãos, quando crianças, divertiram-se bastante quando a mãe, numa mudança, descobriu encaixotados no fundo da garagem os troféus do Gato Preto e os jogou no monte de areia em que as crianças brincavam. Essa, por uns tempos, foi a última miada selvagem do Gato Preto — "Chega de pistas, ou rua!" O Gato Preto fora descoberto e teve que se resignar a ser o austero Sr. Ricardo, pai de família, homem sensato...

SEJA O QUE DEUS QUISER.

Muitos anos depois – quando o Gato Preto já havia perdido pelo caminho várias das sete vidas, passara longe dos setenta anos, tivera alguns enfartes que fulminariam um boi mas não ele, estava cego de um olho e muito mal enxergava de outro – ele arranjou um genro irresponsável: eu.

Num fim de semana em que meus sogros foram nos visitar na fazenda, no domingo pela manhã, bem cedo, vi Seu Ricardo xeretando minha moto, uma 750 Four preta 1974. No dia ante-rior eles haviam chegado com minha sogra guiando o Santana, pois o Seu Ricardo já não enxergava o bastante para dirigir com segurança. Isso o humilhava a ponto de muitas vezes ele pegar o volante quando entravam na estrada de terra, só pra chegar em nossa casa dirigindo. Ele, marrudo que era, não queria dar o braço a torcer.

- Seu Ricardo! Vamos dar uma voltinha na bicha? – perguntei-lhe.

- E porque não? – respondeu.

E assim saíram os dois, o então rapaz, eu, e o senhor, ele. As motos eram uma Hondinha 125 e a CB 750 Four, com escapes "quatro-em-um", motor mexido — aumentado para 880 cmÅ, "taxado", com cavalaria perto dos 100 cv — e que tinha no tanque gasolina de avião. Enquanto andavam na terra o senhor ia na 125 e o rapaz na 750, porém, quando chegaram à estrada de asfalto, pararam e trocaram de máquinas. Seu Ricardo, um homem meio franzino, foi ajeitando-se na motona pesada.

Era uma manhã ensolarada. A estrada estava vazia e uma longa reta de uns dois quilômetros descortinava- se adiante. Os dois estavam parados no meio da pista. Rrrumm! Rruumm!! O rapaz olha bem e espera — não aparece nem passa ninguém. Observa que o acostamento é de areia branca, contrastante com o asfalto negro, e pensa: "Assim ele não sai da pista. Assim ele ao menos não sai da pista. Seja o que Deus quiser."

O rapaz liberou o companheiro com as seguintes "ordens":

– Seu Ricardo, vá na boa e oriente-se pelos acostamentos e faixa branca. Dá pra esticar as quatro primeiras marchas, mas deixe a quinta pra aliviar, maneirando. E daí me espere e diminua que vou correndo atrás! Tá bom? – orienta, com preocupação.

– Não esquenta, rapaz! A primeira marcha pra baixo e o resto pra cima, é? – o senhor consola e pergunta.

– É! – responde o jovem. E ele só viu e ouviu o giro subir lá para a casa das 9.000 ou 10.000 rpm e a moto negra no asfalto negro saiu com tudo. A moto-canhão, agora, era pilotada pelo Gato Preto, e não mais o "Seu Ricardo". O Gato Preto voltava a rugir feroz, e seguiu feito doido, sumindo feito uma bala, as marchas sendo trocadas com perfeição e rapidez de mestre em seu giro máximo. 1a, 2a, 3a, 4a, 5a. E a 5a e última marcha afinou e esgoelou, e foi sumindo... sumindo... O som baixando com a distância...

Mas ele sobreviveu. Eu é que quase tive um enfarte quando dei por mim da loucura que estava fazendo e saí matando a motinha, tentando, em vão, alcançá-lo. Acho que a certa altura ele lembrou de mim, ficou com dó e parou, esperando-me. Cheguei a ele. Vi seus braços com veias saltadas, vi seu rosto contente, transbordante de orgulho por se ver ainda capaz de dominar aquela bruta máquina. Gosto de vida na boca. Sorrimos um pro outro. Não falamos nada. Calados, trocamos de moto e voltamos pra casa de mansinho. Entramos sossegadamente na sala, como se tivéssemos ido ver no pasto um bezerrinho que nascera.

Ajeitei-me no sofá e ele na cadeira de balanço onde minha mulher costumava amamentar, e esperamos em silêncio pelo cafezinho cheiroso trazido por nossas esposas.

É só. Eu poderia ter matado o velho, mas não me arrependo. Sua piscadela de olho enquanto erguia sua xícara de café valeu todo o risco.

Os outros não viam, mas eu parecia ver um rabão de gato preto que oscilava contente pra lá e pra cá atrás daquela cadeira de balanço...

Arnaldo Keller

Colunista do Jornal Superauto www.superauto.com.br.