Um "causo" dos bons tempos ...
Certa feita, em mil novecentos e setenta e qualquer coisa (não poderia ser outra década!), ainda que neste novo século me pareça impossível precisar a data exata, sabe-se que foi num tempo em que Adelaide podia ser a tia de alguém, mas não era uma anã paraguaia, e que Valdirene não era uma paranormal, só a moça que fazia faxina em casa, sucedeu em Itanhaém este fato verídico que agora relato.
Havia na praia do Cibratel um boteco que abrigava as manhãs de ressaca e as tardes de truco de um grupo de amigos, que tinham em comum, entre outras coisas, o hábito de andar sobre duas rodas.
No início apenas um carrinho de praia dos graudos que foi se fixando acima da linha da maré, e que com o passar dos anos ganhou paredes de alvenaria, varandas, muretas, mesas e banquinhos de concreto revestidos com caquinhos cerâmicos (as indefectíveis cadeiras e mesas plásticas de hoje em dia ainda não tinham sido inventadas), o lugar era só um ponto de referência a marcar uma área próxima da entrada do Cibratel, onde terminava a urbanização e o calçamento, e os veículos transitavam livremente sobre a areia da praia.
O "Bar do Gustavo" reinava como única opção daquelas paragens para molhar a guela, ou comer qualquer coisa, como a deliciosa casquinha de siri, ou um espetinho de camarão, que diga-se de passagem, naqueles tempos de antanho eram feitos de forma diferente, os camarões enfiados no espeto pela barriga, ao invés de pelo comprimento...
Nosso grupo estava, como de hábito, se reunindo ali, inventando moda para preencher a existência naquele dia algo nebuloso, quando alguém divisa ao longe a chegada de mais um dos convivas: Vem alguém dos lados de Peruibe!
Um com o olhar mais aguçado reconhece primeiro: É o Zé Augusto!
De fato era o Zé com sua Yamaha, uma F-5 Luxo voltando de alguma aventura que caiu no esquecimento, ou nem teve chance de ser contada, superada pelos fatos que se seguiram...
Outro vindo da cidade!
Reconhecemos imediatamente, pelo som do motor e silhueta, vindo do sentido oposto o Mané Lambreta (ou também Mané Bandeira), personagem que obviamente ganhou este apelido por andar numa Lambretta ...
Mas o Zé parece que segue reto, acompanhando a praia, será que não nos viu aqui?
Alguém do nosso grupo mete dois dedos na boca e obtém um assovio daqueles agudíssimos que se fazem ouvir de longe, outro gesticula com os braços bem abertos, chamando atenção visualmente, a manobra funciona, um braço erguido do Zé acusa o reconhecimento da nossa presença.
Repete-se a algazarra no outro sentido, e o Mané Lambreta igualmente retribui um aceno.
Coisa estranha, os dois nos viram aqui, mas ambos continuam em linha reta, como se pretendessem passar direto! Agora já mais próximos, podíamos perceber que nos olhavam, mas que nenhum dos dois iniciava a leve curva necessária, nem dava mostras de pretender uma parada para nos encontrar.
Estão de gozação, fazendo que vão passar direto e nos ignorar !
Os dois ? Seria muita coincidência !
Os acenos e assovios se repetiram insistentes, e os fatos se sucederam rápida e inusitadamente: A praia estava lisa, e fosse por causa do tempo feioso ou o horário, vazia, portanto não exigia dos dois nenhuma atenção pelo caminho ou chão, e a zôrra no Gustavo certamente oferecia um panorama com muito mais interesse para o olhar...
Não é possível, eles só olham para cá, não estão se vendo !
Mais gestos, assovios e muita gritaria, a cada instante mais alucinada e
apreensiva, que deve ter soado absolutamente ininteligível tanto para o Mané quanto para o Zé, e lá vem eles em linha reta, os dois olhando para nós e seguindo em frente, os dois respondendo alegremente com acenos ao nosso crescente escândalo...
Por longos e intermináveis segundos isto se repetiu, zorra daqui, tchauzinhos de lá, até que o impossível aconteceu.
Naquela areia de maré baixa, formando uma faixa de 30 kilômetros de comprimento com uns 100 ou 200 metros de largura, os dois conseguiram bater de frente, pneu com pneu, e se espalharam pelo chão, passando no ar um pelo outro!
Local do "evento" !Corremos para socorrer, chegamos para apartar, o Mané ainda tonto, se bem que este era mais ou menos seu "modus operandi natural", o Zé injuriado, surtando aos berros e tapões, absolutamente indignado com o acontecido: imagine ser assim colhido de frente, só podia ser proposital, onde já se viu tamanha estupidez, etc., e tal, sem se dar conta de que havia feito exatamente o mesmo, sem a dupla marcação não teria havido o incidente...
Incrível mas verdadeiro, este "causo" leva a marca "Crazy Team / Road Racer" ...Oscar "Coelho" Müller Kato